Dia 2 (Albergaria - Mealhada)


Resultado do intenso nevoeiro
Sobrevivemos! Não sei bem como, mas acordei sem dor absolutamente nenhuma. O meu marido tinha algumas, mas após uns minutos de aquecimento, desapareceram. O dia acordou embaciado e, por isso, fresco e húmido, mas vistas bem as coisas, estas seriam as melhores condições que podíamos ter para fazer a nossa caminhada. Resolvemos, desta forma, aproveitar ao máximo estas circunstâncias e fazer o maior número possível de quilómetros (25Km) antes que o calor viesse - e como ele veio neste dia! Já sabíamos que hoje era dia de alcatrão, alcatrão, alcatrão (ou, como dizem os engenheiros, betuminoso, betuminoso, beuminoso). Assim, durante praticamente todo o dia, iríamos andar pela EN1/IC2, onde os alegres passeios pelo campo seriam trocados por camiões a passar rentinhos a nós e por quilómetros seguidos sem sombra.

Uma vez mais, e como não podia deixar de ser para que não nos esquecêssemos das nossas ocupações profissionais, perfuramos uma obra em Albergaria. E, já sabemos, obra é sinónimo de bermas estreitas e pisos irregulares, pelo que, juntando a fraca visibilidade, estavam reunidas as condições para aumentar a insegurança da jornada. Mas, de coletes vestidos, lá fomos nós, "sem medo que nos assista" e com o objectivo único de fazer 40Km.

Duas horas e meia volvidas e estávamos sentados nas nossas cadeirinhas (mesmo ao lado de uma dúzia de camiões que pernoitaram na estrada), descalços e a comer pãozinho fresco com manteiga e fiambre e uma chávena de leite quentinho com café - tantos diminutivos a espelhar este maravilhoso repasto. Que ricos!!! Posso garantir: o melhor pequeno almoço que já tomei!

Recuperadas as forças, seguimos caminho. E é impressionante as coisas que conseguimos ver quando fazemos uma caminhada destas. Passamos vezes sem conta pelos mesmos sítios, durante anos, sem que nos apercebamos de coisas tão evidentes. Seguem-se exemplos do património riquíssimo que temos, os quais o maridão registou fotograficamente e acrescentou referências bibliográficas para os mais interessados.

"Ponte Velha do Marnel




"Ponte quinhentista, mandada construir pelo rei D. João V em 1713. A reforma da já existente em 1529 fora mandada construir por D. João III. A destrinça da parte que corresponde ao séc. XVIII e da anterior a do séc. XVI é fácil. O aparelho e o traçado são guias seguras. Pertencem ao séc. XVIII seguindo de sul para norte, os três primeiros arcos, os doze restantes são quinhentistas"


Curiosidade: Passados 2 meses de aqui termos passado, esta ponte
entrou em colapso (sem feridos).

Uma outra coisa que reparámos ao longo destes 5 dias foi a quantidade de LIXO que existe nas bermas das estradas. Não sei se existe alguma relação entre esta enorme falta de civismo e o facto desta estrada ser percorrida por peregrinos, mas a verdade é que vimos centenas de garrafas de água vazias, o que me deixou bastante triste. Sendo a peregrinação uma forma das pessoas ficarem em paz consigo mesmas e com o que as rodeia, não compreendo como podem ter gestos tão irresponsáveis, insensatos e desrespeitosos com o que é de todos. Mas não são só as garrafas. Encontra-se literalmente de tudo! E se não forem os caminheiros, serão com certeza viajantes que vêm na janela do seu veículo o seu caixote do lixo privado. Como é possível que alguém atire uma fralda de um bebé pela janela fora? E quem diz isto diz toda a espécie de embalagens alimentares, peças de roupa, artigos de higiene íntima, etc, etc, etc. - o que as pessoas são capazes de fazer com o carro em andamento! E como não pude apanhar o lixo que vi na estrada, resta-me apenas deixar aqui o apelo a quem pense fazer esta caminhada, PARA QUE NÃO ADOPTEM ESTES COMPORTAMENTOS INCONSCIENTES! 


Foi neste troço que encontramos as primeiras descidas do percurso e posso garantir uma coisa: as descidas são, inquestionavelmente e na minha opinião, mutíssimo mais difíceis de suportar do que as subidas. Quando os pés estão maçados (ou, como diz a minha mãe, espalmados) o movimento que fazem durante uma descida é semelhante ao de estar a dar continuamente pontapés numa parede. E dói tudo, inclusivamente, parece que doem as unhas :) Mas ainda estávamos frescos e havia muita estrada para fazer, sendo que rapidamente nos fomos aproximando de Águeda e, por consequência, de terreno plano. A parte mais chata do percurso iniciava-se agora. Passeios, já não os havia há muito tempo (só nas pontes), mas agora entrávamos numa zona supostamente proibida a peões - mas, como pelos vistos é habitual na "classe peregrina", nós fomos.

Um motor de motivação a que tivemos acesso, face à nossa sinalização amarela fluorescente, foi o apoio dos condutores. Passaram imensas pessoas por nós que apitavam (sem que fizessem sinais mais... indecorosos!), acenavam, sorriam e proferiam palavras de incentivo. Encontramos, em vários dias, inúmeros grupos de peregrinos que iam a Fátima de mota, ou condutores que iam a acompanhar outros peregrinos e esses foram quem mais puxou por nós. Foi como se percebessem  melhor a nossa motivação e a nossa missão, querendo mostrar-nos o seu reconhecimento. Mas houve um gesto que se foi multiplicando ao longo desta caminhada e que nos fez sentir especialmente bem, ao qual dediquei umas pequenas palavras no facebook e que abaixo transcrevo.

"Queria apenas dizer-te que és um/uma privilegiado/a por pertenceres a este grupo. :) Durante estes dias temos encontrado muitos condutores na estrada que também gostariam de ser nossos amigos aqui, porque passam por nós e fazem o mais conhecido gesto do facebook. Algumas pessoas passam por nós a conduzir e, com este gesto, simbolizam o apoio que de alguma forma nos querem dar. E sabe tão bem! O maridão é mais reservado, mas eu aceno logo. Também há pessoas que se cruzam connosco na estrada e nos dão orientações (sem lhes perguntarmos) e uma palavra de apoio, nos perguntam de onde vimos e tentam reconfortar-nos com promessas de arrefecimento da temperatura. E isto sabe muito bem! Faz-nos sentir um pouco mais acompanhados. Por isso fica aqui o nosso apelo: quando se cruzarem com pessoas a envergarem coletes fluorescentes (verifiquem que não estão perto de nenhuma obra ou acidente de trânsito), com um andar meio enviesado e a entornarem garrafas de água pela cabeça abaixo, façam-lhes este sinal e ganharam mais uns m2 no céu!"

E, pronto! Mais uma horita de caminhada e o sol instalou-se com toda a sua magnificência sobre as nossas cabeças e percebemos que o dia ia ser muuuuuuito longo! E como estávamos a circular em plena via reservada a veículos automóveis, os meus sogros não podiam parar nas bermas, o que tornou a digressão deste dia um pouco mais solitária e introspectiva. Nestes momentos pensava em muitas coisas: avaliei as minhas prioridades; fiz um auto-exame de consciência; comecei a definir objectivos para a minha vida depois da caminhada. É certo que também rezei muito: rezei pela minha família, rezei pelos meus amigos, rezei por algumas pessoas que estavam a passar períodos muito difíceis e guardei um bocadinho para rezar pelos meus pés e pela minha cabeça! Rezei para que a força de vontade não me faltasse e para que nunca se instalasse em  mim  vontade para desistir - fosse nesta caminhada ou em qualquer outro "percurso menos recto" da minha vida. E cheguei a um ponto em que as dores nos pés eram de tal ordem que entrei numa espécie de transe, num estado de concentração puro, aplicando todos os meus conhecimentos de PNL (programação neuro-linguística) para não ceder e continuar por mais uns quilómetros - e parece que resultou!

Vista do IC2 sobre Águeda

"Dia 2 (hora do almoço) - Meus caros. Ao contrário do que seria de esperar, acordei sem qualquer bolha, dor muscular ou sono. O maridão acordou um pouco debilitado, mas isso foi o Jesus a castigá-lo por não me ter acompanhado sempre nas minhas caminhadas de preparação. Chegamos à "peregrinação" eram 7h e passados apenas alguns minutos de iniciarmos a caminhada, ele aqueceu e entrou no ritmo da coisa - o Jesus foi amigo dele. Estava boa a "peregrinação": o nevoeiro era bastante e parecia que assim iria continuar, fazendo prever uma manhã mais fresca do que ontem. Definimos o nosso objectivo matinal: 25Km. E sabem uma coisa? Ao fim de 6h, incluindo 2 paragens, CONCLUÍMOS O NOSSO OBJECTIVO!!! Ai amigos, mas custou... Os últimos 5 Km já foram passados a rezar à minha Senhora para me dar forças para atingir o nosso objectivo e aguentar o maridão que ia cantando tudo o que ia ouvindo na rádio (não necessariamente nos mesmos tons) :p Mas o importante é que conseguimos. Apareceram-nos umas bolhinhas muito pequeninas e esperamos que sejam machos e que não se reproduzam. Agora estamos aqui perto da casa do J. C.S. de papo ao ar e de pernas ao alto a ver se recuperamos para os 15 Km que ainda queremos fazer a partir das 15h30-16h, a ver se fugimos do calor. É que tivemos um azar do caraças: o Verão havia de começar justamente quando iniciamos esta caminhada..."

Fotografia que tirámos na EN1, na cortada que vai para casa do nosso amigo "Zé Brasileiro".

O calor estava no seu expoente máximo, assim como o cansaço, mas nem as moscas me conseguiram desviar de uma boa meia horinha de sono - peguei num lençol velho, fiz-lhe um buraco para respirar e passados 2 segundos, dormia profundamente em sono REM. Repetidos os situais do spa nos nossos pés e pernas, voltamos à estrada. Mas o sol estava de tal forma forte às 4h da tarde que passados 10 minutos já não tínhamos água - ou porque a bebemos, ou porque a deitamos pela cabeça abaixo - de maneira que começamos a andar um pouco mais devagar. A minha santa sogra, que começou a perceber o nosso cansaço, acompanhou-nos depois do lanche, injectando-nos quantidades massivas de conversa e boa disposição. 

Marco com o quilómetro onde ficámos no 2º dia ("sobre cama de lixo")
Aproveitei sempre para falar com as pessoas mais ao final da tarde, porque com a "converseta" sempre me ajudavam a esquecer um pouco as dores e a dar mais uns passos. A minha mãe chegou a estar quase 1h comigo ao telemóvel! Queríamos ter chegado à Mealhada, mas estávamos todos "rotos" e uma vez que tínhamos tempo, fomos repousar os "veículos" a Coimbra, onde os meus sogros têm casa. Após 30-45 minutos de viagem que fizemos de carro até casa, e assim que pus os pés no chão, percebi o peso dos quilómetros que tinha feito. Só me doiam os pés, mas isso foi o suficiente para que os primeiros passos parecessem os de uma pessoa que estava a andar pela primeira vez. Com isto não quero assustar ninguém, mas também acho que quem pretende fazer uma coisa destas tem plena consciência do que custa. Para equilibrar um pouco as coisas só posso dizer que um bom banho quente elimina 80% das dores, por isso não há nada a temer. Mais um spa aos pés e às pernas e estamos como novos. Nem sono já há...


"DIA 2 - BRANCA - MEALHADA (final do dia). "E, pronto"! Está concluída mais uma jornada! Hoje fizemos 38,4Km (faltou um bocadinho assim) porque parece que os nossos pés e as nossas viaturas se incompatibilizaram. Paramos na Curia, Mealhada, mas não fomos aos leitões. O cansaço abunda por estas bandas, sobretudo nos pés. O maridão tem umas bolhas que estão a pedir protagonismo, mas nós vamos dar conta delas! Ao primeiro sinal da existência de uma destas mulas atestamos-lhe imediatamente com compeed. Acho que no final vamos criar uns compeed em forma de pé, que sempre é mais prático. Já adquirimos o novo look de entrevadinhos sempre que paramos as viaturas, nem que seja por 2 minutos. Mas, apesar de tudo, ainda há muita força, muita fé e muita vontade de chegar ao final. Pelas nossas contas já fizemos 86Km e esperamos chegar mais ou menos a meio do percurso amanhã à hora do almoço (Coimbra)."